OLHOS DE EMOÇÃO, OUVIDOS DE FANTASIA: PRODUÇÃO DE AUDIOLIVROS PARA ESTUDANTES CEGOS

OLHOS DE EMOÇÃO, OUVIDOS DE FANTASIA: PRODUÇÃO DE AUDIOLIVROS PARA ESTUDANTES CEGOS

Entenda o projeto

O projeto “Olhos de emoção, ouvidos de fantasia: produção de audiolivros para estudantes cegos” foi vivenciado com estudantes do 7 ano da escola municipal Cônego Costa Carvalho, em Paulista/PE, no ano de 2018. O objetivo do projeto foi aprimorar a leitura oral dos estudantes e desenvolver neles o gosto pela leitura literária. O projeto organizou-se em 6 etapas interdependentes: a) diagnose, momento em que foi possível verificar tanto o desempenho dos alunos na leitura oral, quanto o interesse dos mesmos pela leitura literária; b) pontuação e ritmo de leitura, fase em que os alunos puderam vivenciar práticas de linguagem que visaram habilitá-los para o necessário respeito à pontuação e para a aquisição de um ritmo de leitura c) interpretação, instante em que foi possível trabalhar conteúdos que levaram o aluno a aplicar maior expressividade e variação vocal às leituras; d) produção escrita, fase em que os discentes puderam melhorar a competência de escrita a partir da produção do gênero indicação de leitura; e) ensaio, momento para aprimorar a leitura oral por meio da autoavaliação de leitura; f) audiodescrição, fase em que os estudantes experimentaram uma vivência no universo da pessoa cega a partir da prática da audiodescrição. Como resultado do projeto, que se fundamentou em Ferrarezi Jr (2017) e Dalvi (2013), os estudantes passaram a ter maior interesse pelos gêneros literários e qualificaram suas leituras orais a partir de uma prática leitora mais expressiva, com variação da entonação vocal, respeito à pontuação, ritmo de leitura e consciência do ouvinte.

Experiência literária e inclusão

O presente artigo, que está inscrito dentro da linha pesquisa que se dedica a refletir sobre as práticas pedagógicas com gêneros literários na escola, é resultante de ume experiência escolar com a leitura literária a partir do projeto “Olhos de emoção, ouvidos de fantasia: produção de audiolivros para estudantes cegos”. O referido projeto foi vivenciado em uma turma do 7 ano do Ensino Fundamental – Anos finais, em um escola pública, da cidade do Paulista/PE e teve por objetivo aprimorar a fluência leitora dos alunos e auxiliá-los no desenvolvimento do hábito e do gosto pela leitura literária.

Para isso, o projeto buscou dar um significado social para a prática da leitura literária por meio da produção de audiolivros para crianças cegas. Desta forma, esse artigo tem por objetivo expor os resultados desse projeto que fez uso de diversas linguagens para explorar o texto literário, deu aos estudantes a oportunidade de vivenciar uma leitura que tinha um público real – estudantes cegos – e conseguiu aprimorar a leitura oral dos estudantes por meio produção de audiolivros. Esse leque de objetivos alcançados é que justifica a relevância de se trabalhar a leitura oral de gêneros literários em sala de aula.

Os estudos no campo de ensino de língua (FERRAREZI; CARVALHO, 2017) já alertam a um bom tempo para a necessidade de se oferecer ao aluno um contexto significativo de aprendizagem. E no que tange à leitura, esse contexto se dá a partir do momento que o sujeito-aluno vê um porquê para sua leitura, um interlocutor diferente do professor para seu ato leitor. Acreditamos que esse é um caminho construtivo para se pensar na formação de leitores de gêneros literários. É preciso repensar o ato leitor na sala de aula. Nesse ótica de repensar o ato leitor, passemos a uma reflexão sobre a leitura na escola.

O encanto

A voz de Manuel de Barros, na epígrafe, que achou como poucos o silêncio gritante da palavra e fez dele seu lugar de exploração da estética do verbo em seu estado de beleza, principia nossa reflexão sobre a leitura na escola porque vemos na voz do poeta um dizer que consideramos significativo no que diz respeito à fase de encantamento do leitor: desver o mundo. O que seria desver o mundo senão transfigurá-lo, e para tal, é preciso ter uma experiência de encantamento com ele. Nessa perspectiva, o que estamos chamando de fase de encantamento do leitor é a sua iniciação no mundo da língua – uma iniciação que é de fato uma aventura no mundo da linguagem. Nessa dimensão, o leitor, diante do texto a ser lido – a vida e o que a constitui em toda a sua pluralidade – lê por uma necessidade, lê para construir sentido, lê para, literalmente, interagir com o mundo. Toda essa fase é responsável pela formação do conhecimento primário de mundo, um conhecimento que, como sabemos, precede a leitura da palavra em sua forma convencional (FREIRE, 1985).

Se pensarmos detidamente na formação do leitor convencional, isto é, o leitor da palavra escolarizada, poderemos considerar que a fase de encantamento, em seu momento infantil – quando bem gerenciada por práticas como leitura habitual, contação de história e de outras práticas – pode ser bem explorada para aproximar a criança do mundo institucional da língua – a língua da escola. Essa aproximação da criança da língua escolar vai, de certa forma, distanciando-a da língua da experimentação. Há uma demanda social que obriga o sujeito-escolar a dominar uma língua da forma, da regra, da sistematização, da norma. Desta forma, a leitura, antes uma atitude de necessidade, de espontaneidade passa ao estado de obrigatoriedade. Não estamos aqui fazendo uma apologia a não escolarização, mas pontuando que a experiência escolar promove um nível de ruptura entre o sujeito e sua língua, isto é, a língua da escola, a depender do sujeito-professor que trabalha com ela, passa a ser uma, e a da rua, a de todos os dias passa a ser outra. Nesse aspecto, a leitura, de real, passa a ser fictícia, fragmentada. É a partir desse ponto que podemos dizer que o sujeito se desencanta. Uma amostra desse desencanto, pode ser visto nos relatos colhidos por Zaccur (2000, p. 119):

Na escola, quase desaprendi o gosto pela língua, quando a descobri como um cão de guarda rosnando regras (…) Aluno: Alves (graduando em pedagogia). Uma recordação má, mas não muito dolorida: o ter de aprender regras pelas regras, sem percepção do sentido prático das mesmas. Aluno: Alves (Relado sobre experiências no 1º e 2º graus)

Zaccur (2000, p. 119)

O relato do último aluno chama bastante a atenção porque coloca em evidência uma questão central para o processo de ensino e aprendizagem: o porquê de se aprender algo. É notório na literatura educacional que o aluno ficará mais motivado a aprender se conseguir enxergar um porquê para o saber que está-lhe sendo ensinado. Desta forma, se nas aulas de língua portuguesa o professor se limita a usar a leitura como pretexto para ensinar nomenclaturas gramaticais, certamente ele terá alunos que verão a língua ensinada na escola como um ser estranho, como algo que não responde a uma demanda de uso. Em outras palavras, o ensino dessa língua da nomenclatura e das classificações só tem serventia para a sala de aula. É nesse aspecto que falamos do desencanto do leitor com a língua.

O desencanto com a leitura – a partir da experiência escolar – pode ser abalizado na fala de quem viveu encantado e encantando pelas palavras:

A educação do ser poético

Por que motivo as crianças de modo

geral são poetas e, com o tempo,

deixam-se de sê-lo? será a poesia um

estado de infância relacionada com

a necessidade de jogo, a ausência de

conhecimento livresco, a

despreocupação com os

mandamentos práticos do viver,

estado de pureza da mente em suma

[…] mas o adulto, na maioria dos casos,

perde essa comunhão com a

poesia, não estará na

escola, mais do que em qualquer

outra instituição social,

o elemento corrosivo do instinto

poético da infância, que vai

fenecendo à proporção que o estudo

sistemático se desenvolve, até

desaparecer no homem feito e

preparado supostamente para vida?

DRUMOND DE ANDRADE, 1974

O que Drummond apresenta como efeito corrosivo para o trabalho com a poesia por parte da escola, nós ampliamos para o trabalho que é feito com a língua em suas nuances literária e não literária. Cientes de que sempre há boas práticas sendo desenvolvidas em muitas escolas, também são muitas as suas falhas quando o assunto é a formação do leitor. Segundo Saveli (2007, p. 108), um erro persistente é o fato de a escola ter uma concepção estruturalista da leitura. Nesse caso, “a leitura é tomada como decodificação e “tradução oral do escrito””. Saveli (Id.) também toma como razões para o mau trabalho com a formação do leitor a má formação dos professores, a importância excessiva aos livros didáticos, a dificuldade de transposição das pesquisas acadêmicas para o espaço da sala de aula e “o funcionamento da escola, que não percebe que a leitura perpassa todas as formas de aprendizagem, pois ela é atividade meio, a serviço de um projeto que ultrapassa” (SAVELI, id. ibid). Também pensando nas dificuldades da escola para a formação do leitor, Lerner (2002, p. 18) apresenta suas razões:

  • 2. A escolarização das práticas de leitura e de escrita apresenta problemas árduos;
  • 3. Os propósitos que se perseguem na escola ao ler e escrever são diferentes dos que orientam a leitura e a escrita fora dela;
  • 4. A necessidade institucional de controlar a aprendizagem leva a pôr em primeiro plano somente os aspectos mais acessíveis à avaliação.

Das várias razões apontadas por Lerner para o insucesso da escola no projeto de formar leitores, a distância entre a leitura da escola e a leitura real é ponto destacado pela autora que afirma: “a versão escolar da leitura e da escrita parece atentar contra o senso comum. Por que e para que ensinar algo tão diferente do que as crianças terão que usar depois, fora da escola?” (LERNER, 2002, p. 33). 

Ainda no bojo das razões que geram o desencanto pela leitura na escola também podemos falar na metodologia de ensino. Em muitas práticas escolares, a aula reservada para o trabalho com a literatura se resume à historiografia literária, como afirma Rezende (2013, p. 101) “a historiografia da literatura centrada no nacionalismo literário ainda é de longe a perspectiva dominante no ensino de literatura, desdobrando-se em sequência temporal numa lista de autores e obras do cânone”. Nesse contexto, o estudante não deixa de ver a beleza da estética literária e tem uma retomada de uma aula de história – diga-se de passagem metodologicamente não recomendada se pensarmos que o ensino de história deve estar para a reflexão, para investigação do fato histórico e não para a absorção não refletida de uma lista de fatos e datas.

Compreendemos que a saída para essa realidade desencante para com a leitura é ““literaturizar” a escola e a pedagogia ao invés de escolarizar ou pedagogizar a literatura” (DALVI, 2013, p. 76). Nesse percurso, podemos então passar para o momento de reencantamento para com a leitura literária.

O reencanto

O que estamos compreendendo como reencanto do sujeito-aluno para com a leitura é a possibilidade de ele ter uma melhor identificação com as atividades de leituras propostas pelo professor. Nesse aspecto em que o professor é intimado a fazer parte do processo de formação leitor, é necessário que se faça um esclarecimento: a formação do leitor não é de responsabilidade de uma disciplina, no caso Língua Portuguesa. Essa é uma tarefa que deve envolver toda a instituição escolar como bem afirma Lerner (2002, p. 97) “a problemática apresentada pela formação do leitor, longe de ser específica de determinadas séries, é comum a toda a instituição. O desafio de dar sentido à leitura tem, então, uma dimensão institucional”. Assim, o reencanto do aluno para com a leitura passa por uma política social e institucional que tome a leitura como um eixo central da máquina de formação cidadã que é a escola. O que se espera da escola é que ela auxilie na construção de uma comunidade de leitores com todos os rituais implicados no ato de leitura. Não podemos também nos esquecer da parcela de responsabilidade da sociedade como um todo na formação sujeito leitor. Estamos nos referindo a um projeto social que envolva ações públicas e privadas para a criação de uma cultura de leitura. Um exemplo de ação pró-leitura da iniciativa privada é o projeto social do banco Itaú que distribui livros e produz material midiático convocando os pais a lerem para seus filhos.

Enquanto instituição pertencente ao aparelho estatal, à escola tem a função de auxiliar os sujeitos para a assunção de uma posição crítico-social no mundo. Para tal, pensando na leitura, ela deve trabalhar em um duplo aspecto: didático e comunicacional. Esses dois campos do saber docente não se excluem, mas, ao contrário, devem ser trabalhados de maneira integrada e funcional. A didatização da leitura deve ocorrer de maneira a não descaracterizar o fim comunicacional, social e propositivo da leitura. Desta forma, com um a ação moderada, a escola vai envolvendo o aluno no âmbito de uma leitura significativa. Tratando da questão da formação do leitor, Lerner (Id., p. 64) nos esclarece que “preservar o sentido dos comportamentos do leitor e do escritor supõe propiciar que sejam adquiridos por participação nas práticas das quais tomam parte, que se ponham efetivamente em ação”.

Em síntese, diríamos que teremos uma alunos leitores de gêneros literários quando, na escola, houver “um deslocamento considerável de ir do ensino de literatura para a leitura literária” (REZENDE, 2013, p.106). Em outras palavras, é preciso que a escola oportunize a vivência com leitura literária, pelas mais diversas formas – clubes de leitura, sarau, releituras, concursos etc. – e dê menos espaço para a literatura expositiva, impessoal e indiferente das aulas embaladas para concursos e vestibulares.

É com base nessa proposta de vivência literária que passamos a mostrar um breve relato de experiência escolar com a leitura literária que teve por princípio colocar os estudantes em um contexto de habito e proposito social com a leitura literária.

Relato: projeto “Olhos de emoção, ouvidos de fantasia: produção de audiolivros para estudantes cegos

Sou um professor de Língua Portuguesa apaixonado pela leitura; e como tal, tento levar essa paixão para os alunos. Por esse encanto pela leitura, em 2017, mandei construir uma biblioteca móvel – trailer – que engato no meu carro e levo para escolas públicas onde faço empréstimo de livros, jogos de leitura e contação de histórias. Esse projeto é chamado “Leitura na Esquina”. Pois bem, em Fevereiro de 2018, levei a biblioteca móvel para a escola onde apliquei o projeto. Convidei a turma do 7⁰ ano para visitar o trailer para escolher um livro. Minha intenção era possibilitar um momento de leitura deleite. Para meu espanto, os alunos, quando viram o trailer cheio de livros, não tiveram interesse em entrar e ficaram distantes. Aquilo me mostrou o distanciamento da turma do mundo da leitura. A partir dali eu comecei a pensar em desenvolver um projeto que mudasse aquela realidade de não leitores.

Analisando o livro didático do 7⁰ ano, verifiquei que o gênero audiolivro era proposto. Em meio às minhas pesquisas e reflexões sobre esse gênero, pensei que ao invés de os alunos apenas vivenciarem rodas de leitura em sala, eles poderiam ler para alunos cegos de outras escolas. Considerei que seria um trabalho interessante, articular o gosto pela leitura com uma demanda social de prática com a língua: a leitura para pessoas cegas.

            A partir da escolha da produção de audiolivro, eu tracei o objetivo geral que era aprimorar a fluência leitora dos alunos e auxiliá-los no desenvolvimento do hábito e do gosto pela leitura literária. Para alcançar esse objetivo geral, elenquei os específicos com seus respectivos conteúdos: a) desenvolver a compreensão e a interpretação textual (conteúdo: compreensão e interpretação), b) realizar uma leitura oral com fruição, fazendo uso dos recursos da oralidade (conteúdos: interpretação, pausas, entonação, pontuação, intenção leitora), c) conhecer e produzir o gênero indicação de leitura (conteúdo: indicação de litura), d) conhecer e praticar a audiodescrição de imagens (conteúdo: audiodescrição).

            Estruturei o projeto em 4 fases – fase 1: diagnose; fase 2: pontuação; fase 3: intenção leitora, intepretação e audiodescrição; fase 4: ensaio dos textos.

DIAGNOSE

Para realizar a diagnose, planejei algumas aulas de experimentação com a leitura. No dia 19/02, li com os alunos o conto “A menina vendedora de fósforos”. Nessa leitura, pedi para cada aluno segurar um cubo de gelo. Ao final, discuti com os alunos sobre o enredo e sobre a sensação de frio sentida. Os alunos entraram no clima da história e chegaram a relatar que sentiram o frio da história. Minha intenção foi possibilitar aos alunos uma vivência diferente e marcante com a leitura. Em seguida, pedi que os alunos fechassem os olhos para ouvir o conto “O pulo do gato”. Com isso, eu buscava explorar a escuta e a construção imaginativa. Após a audição, abri uma discussão sobre o enredo – discutimos sobre os sentidos possíveis para a expressão o pulo do gato – e sobre a sensação de apenas ouvir.

Depois dessas duas experimentações, eu apresentei o projeto à turma: falei para os alunos o que era um audiolivro e que eles iriam produzi-lo para estudantes cegos, além de lerem para alunos cegos em outras escolas. Continuando a aula, perguntei aos alunos o que eles consideravam importante para se fazer uma boa leitura. Eles responderam que era importante estudar o texto e ler com calma. Feito isso, conversei com a turma sobre a interpretação de leitura feita pelo ledor do conto “O pulo do gato”. Falamos então sobre pausa, ritmo, entonação, interpretação. Chamei a tenção dos alunos para a necessidade da compreensão do texto que resulta em efeitos interpretativos na leitura oral. Como última atividade, pedi para os alunos responderem, por escrito, duas questões – você gosta de ler? Você se lembra do título do último livro que leu? –. O resultado desse questionário mostrou alunos não afeitos à leitura – “ler é chato, é desinteressante”, disseram eles.

Dando continuidade à preparação para a diagnose, no dia 20/02, realizei mais um momento de análise de leitura. Coloquei o áudio de um conto de assombração. Após a audição e posterior discussão sobre o enredo do conto, eu distribuí o conto impresso para os alunos. A partir daí, eu repeti o áudio, fui parando em alguns trechos e indagando os alunos com algumas questões, como “por que o ledor colocou uma voz rouca nesse trecho?”. Para essa pergunta, os alunos disseram que o ledor havia colocado aquele tipo de voz para dar um tom de assombro, de mistério à leitura. Essas e outras respostas foram registradas por escrito. Com essa atividade eu pude mostrar aos alunos a importância da interpretação e da variação da entonação para dar vida à leitura. No final da aula, dei a cada aluno um livro e pedi que lessem o conto “As serpentes que roubaram a noite” para que no dia seguinte fizéssemos uma atividade.

No dia 21, a aula teve um tom mais lúdico. Primeiro, fiz uma leitura coletiva do conto. Em seguida realizei alguns jogos de leitura. Ao final da aula, eu pedi aos estudantes que relessem o conto em casa para gravarmos a leitura na aula seguinte. Disse-lhes que deveriam aplicar à leitura as orientações que haviam sido trabalhadas em aulas anteriores – respeito à pontuação, interpretação, entonação – e que eles deveriam considerar que a leitura seria para crianças cegas. Assim, no dia 26, gravei a leitura de cada aluno. O resultado dessa gravação mostrou que 100% dos alunos não tinham problemas com a decodificação. Todavia, eles apresentaram problemas de respeito à pontuação, ritmo de leitura, entonação, interpretação.

PONTUAÇÃO E RITMO DE LEITURA

 No dia 05/03, levei para sala mais uma experimento de leitura – montei na sala um pequeno cenário baseado no conto “Os presentes da povo miúdo”. Durante a leitura, os alunos tiveram que vivenciar um trecho da história a partir do cenário posto. Continuando, fiz outra leitura do conto, mas dando ênfase na pontuação. Em seguida, dividi a turma em duplas e pedi que eles escolhessem um trecho para lerem de maneira mais compassada, dando destaque à pontuação. Dei um tempo e depois fui ouvindo cada dupla que, como esperado, fez uma leitura mais cadenciada, conforme o que pedia a pontuação. Acrescido a isso, discuti com os alunos a interpretação que caberia na fala de alguns personagens. Os alunos foram   dizendo “aqui cabe uma voz de medo”.  No dia 07/03, continuei o trabalho com a pontuação. Para isso, usei o gênero diálogo por ver nele um bom trabalho com a pontuação. Dei uma cópia do diálogo para cada aluno e fiz uma leitura coletiva dando bastante ênfase à pontuação presente no diálogo. Em seguida formei duplas e pedi que ensaiassem a leitura do diálogo. Terminado o tempo, chamei cada dupla para ler. O gênero escolhido ajudou os alunos a entenderem a importância da pontuação para a construção dos sentidos e para o cadenciamento da leitura.

No dia 20/03, aprofundei o trabalho com a pontuação. Primeiro, coloquei o áudio do conto “A formiguinha e a neve. Terminada a audição, discuti com os alunos o enredo do conto e a interpretação de leitura do ledor. Indaguei os alunos –  por que a ledora usou uma voz mais fina para o personagem da formiga e uma voz mais grave quando o sol falou? – Com isso eu revisitei a necessidade da intepretação e da modulação da voz. Em seguida, para trabalhar a pontuação, eu dei par os alunos uma cópia do conto que havia sido ouvido com alguns trechos sem pontuação. Coletivamente nós relemos o conto e o fomos pontuando. Foi uma oportunidade para falar que a pontuação era uma questão de estilo e que no caso da leitura oral, era fundamental respeitá-la para construir os sentidos. No dia 21/03 fiz a segunda gravação de leitura. Os resultados dessa segunda leitura já mostraram os alunos com uma leitura mais cadenciada, respeitando a pontuação.

INTENÇÃO LEITORA E INTEPRETAÇÃO

No dia 27/03, a atividade foi a audição da fábula “A cigarra e a formiga”. Após a audição, discuti com a turma o enredo e a moral da fábula. Em seguida, discuti com os alunos sobre a interpretação do ledor. Vimos que o ledor ia variando sua voz em momentos da narrativa. A atividade seguinte foi um confrontamento de personagens. Dividi a turma em duas equipes e coloquei uma de frente para outra. Uma equipe representava a cigarra e a outra a formiga. Dessa forma, os alunos foram representando cada um dos personagens com a devida interpretação vocal. No dia 02/04, o foco da aula foi a pausa de respiração. Após mais uma roda de leitura onde os alunos compartilharam suas leituras, eu projetei uma fábula no quadro. Antes de fazer uma leitura coletiva do texto, eu expliquei para os alunos que além das pausas resultantes da pontuação, também havia as pausas de respiração. Após essa distinção eu fui lendo a fábula coletivamente e perguntando aos alunos onde caberiam pausas de respiração. Os alunos foram indicando os locais das pausas e eu fui marcando essas pausas no quadro com a letra “P”. Essa mesma marcação os alunos foram fazendo no texto impresso. Feito isso, dividi a turma em equipes de três e pedi para cada equipe fazer a leitura da fábula levando em consideração as pausas de respiração.

No dia 03/04, trabalhei a clareza da leitura.  Para isso, convidei um funcionário da escola, pus uma venda em seus olhos e pedi que uma dupla de alunos lesse uma das fábulas. Ao final, retirei a venda do funcionário e lhe perguntei o que ele lembrava da história. O funcionário relatou que havia entendido pouco e que a leitura não havia sido clara. A partir desse relato, eu discuti com a turma sobre a importância da clareza, da boa dicção, do respeito à pontuação e da necessidade da interpretação.

No dia 10/04, foi a gravação da fábula “A raposa e a cegonha”. Antes de gravarem, eu procurei deixar claro para os alunos que eles leriam para crianças cegas. O objetivo era fazer o aluno considerar o ouvinte real. Terminada a gravação, eu chamei cada dupla para se ouvir. O objetivo era levar cada aluno a fazer uma autoavaliação da sua leitura. Os alunos perceberam falhas – leitura rápida, sem variação de entonação – e progressos – leitura com respeito à pontuação e com mais expressividade.

A aula do dia 11/04 foi dedicada ao trabalho com a sonoplastia para a fábula a cigarra e formiga. Meu objetivo era mostrar aos alunos como os recursos sonoros poderiam agregar efeitos à narração da fábula. Assim, levei para essa alguns instrumentos musicais da escola – prato, caixa –, pedaços de madeira, o computador e meu violão. Reli a fábula com os alunos e fui discutindo com eles os sons que caberiam em alguns trechos. Os sons escolhidos foram escritos nas bordas da fábula. Com isso nós criamos um roteiro de sonoplastia. Feito isso, dividi a turma em equipes – narradores, personagens e sonoplastia. Com meu violão eu criei uma pequena música que seria cantada pela cigarra. Com tudo pronto, começamos o ensaio: narradores com uma leitura bem marcada, personagens com variações vocais condizentes com o contexto da narrativa e sonoplastas empolgados pela possibilidade de criarem os sons da fábula.

 A aula do dia 17/04 foi dedicada à interpretação. Levei um espelho para a sala e pedi para que os alunos dissessem um trecho do texto olhando para o espelho. A ideia era que o aluno visse a sua expressão facial para ver se ela condizia com a interpretação pedida pelo texto. Terminada essa atividade, continuamos o ensaio da fábula a cigarra e a formiga. Na aula do dia 23/04, fiz uma retomada de tudo que havíamos estudado até o momento sobre a leitura oral. O segundo momento da aula foi dedicado a uma vivência com a audiodescrição. Como os alunos iriam ler para estudantes cegos e produzir um audiolivro, considerei que seria importante que eles tivessem contato com a linguagem da audiodescrição de imagens. Antes de mostrar aos alunos o que era a audiodescrição, eu fiz uma trabalho de sensibilização: a) dei uma venda para cada aluno; b) coloquei o vídeo da audiodescrição de uma fotografia; c) após a audição, pedi para os alunos tirarem a venda e perguntei o que eles haviam entendido. A turma lembrava de trechos quebrados do áudio. Coloquei o vídeo novamente só que os alunos estavam sem as vendas. Discutimos sobre a importância da boa oralização da leitura, da dicção.

 Em seguida, chamei a tenção dos alunos para a linguagem e para a forma como havia sido feita a audiodescrição da foto. Os alunos viram que o audiodescritor usou termos técnicos como primeiro e segundo plano, descreveu a foto seguindo um roteiro: da direita para a esquerda, de cima para baixo, do geral para o particular. Em seguida, exibi um vídeo que explicava o que era a audiodescrição. Como última atividade, exibi no quadro as imagens das fábulas que seriam gravadas e chamei os alunos para fazerem uma descrição. O objetivo era aproximá-los da habilidade da descrição de maneira mais informal.

 No dia 24/04, continuei o trabalho com a audiodescrição. Com os olhos vendados, os alunos tentaram adivinhar objetos e identificar os colegas pelo toque no rosto e nos cabelos. Como segunda atividade, distribuí um texto que falava sobre as orientações para se fazer uma audiodescrição. Com a leitura desse texto os alunos tiveram acesso a questões técnicas da audiodescriãção: ler do geral para o específico, de cima para baixo, da direita para a esquerda, ser objetivo. O objetivo da atividade era dar aos alunos as noções básicas que os orientariam na descrição das imagens fábulas. Para que os alunos tivessem uma melhor referência sobre a audiodescrição, eu levei para sala a professora Nilma que é cega e trabalha com audiodescrição. Assim, no dia 27/07 a professora Nilma deu uma oficina para os alunos.

LAPIDAÇÃO DA LEITURA ORAL

Nessa fase o objetivo era trabalhar de maneira individualizada a dificuldade de cada aluno para aprimorar a leitura oral. Para isso, foram realizadas, em Maio, várias gravações de leitura. A cada gravação eu fui pontuando para cada aluno algum aspecto que precisava ser melhorado – intepretação, ritmo de leitura, entonação, dicção, intenção leitora, respeito às pausas de pontuação e de respiração. Nesse processo de ler, gravar, ouvir, ajustar e reler, cada aluno foi aprimorando a sua leitura, apropriando-se dela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O teóricos que tratam da formação de leitores literários na escola já enfatizam a um certo tempo que a escola precisa repensar as práticas de leitura que são propostas aos estudantes. O grande desafio da instituição escolar é apresentar uma leitura compulsória, isto é, uma leitura que o aluno não escolhe, mas é obrigado a ler e criar as condições de produção para que o estudante seja levado ao prazer da leitura literária.

            Nessa perspectiva, acreditamos que a experiência vivenciada pelos alunos no projeto “Olhos de emoção, ouvidos de fantasia” é um exemplo de que é possível colocar o estudante diante de uma experiência escolarizada com a leitura literária – com fins de ampliar sua competência leitora; e esse é o papel da escola -, mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a devida liberdade para que ele construa sua própria história de leitura.

            Na vivência do projeto, os estudantes tiveram a oportunidade de dar sentido as suas leituras porque sabiam que leriam para sujeitos reais – estudantes cegos. Isso teve um efeito muito significativo no contato dos alunos com o ato leitor porque eles tinham um ouvinte real. Essa tem sido a tônica dos teóricos da formação leitora que defendem que as práticas de leitura precisam ter sentido para os estudantes que não podem ter como único ouvinte o professor.

            Ainda no campo das positividades do projeto, destaca-a se pluralidade metodológica para o trabalho com a leitura. Os alunos vivenciaram jogos de leitura –  a importância do lúdico na leitura literária -, leitura dramatizada – teatro clássico e teatro de fantoches -, leitura em de cenário temático. Também foi relevante a avaliação constante das leituras dos alunos que passaram pela experiência de terem suas leituras gravadas para realizaram uma autoavaliação.

            Todo o contexto de leitura possibilitado pelo projeto levou os estudantes a terem maior apreço pela leitura literária, a aprimorarem a leitura oral – leituras com variação de entonação, bem ritmada, com intepretação, respeitando a pontuação. Assim, o projeto “Olhos de emoção, ouvidos de fantasia” é uma prática com a leitura literária que mostra que é mais do que possível a escola cumprir seu papel formador, gerenciando a leitura dos estudantes, sem, com isso, retirar deles seu direito a uma leitura prazerosa e socialmente significativa.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, C. D. A educação do ser poético. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro – RJ, 1974
  • BARROS, M. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
  • MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita. Atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.
  • FREIRE, P. A importância do ato de ler. In:______ Col. Polêmicas do nosso tempo, Editora Cortez, São Paulo, 1985.  
  • LERNER, D. Ler e escrever na escola: o oral, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.
  • SAVELI, Esméria de Lourdes. Por uma pedagogia da leitura: reflexões sobre a formação  do leitor. In: CORREA, Djane Antonucci; SALEH, Pascoalina Bailon de Oliveira (Org).  Práticas de letramento no ensino – leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola Editorial; Ponta Grossa, PR: UEPG, 2007.
  • ZACCUR, E. Do ensino monológico ao dialógico: ser usuário pressupõe a condição de serleitor? In: AZEREDO, J. C. Língua Portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Glaucio Ramos

Glaucio Ramos

Doutor em Linguagem e Cultura, com foco em Análise do Discurso, autor de literatura infantil, contador de histórias, empreendedor social no campo de formação de leitores, formador de professores com mais dez anos de experiência, atuando nos campos da leitura, escrita, oralidade e projetos educacionais.Ganhador de diversos prêmios na área de projetos educacionais – Prêmio Espírito Público 2019; Professores do Brasil, 2018; Prêmio Maria da Penha vai à escola 2019; Prêmio Detran de educação 2017/2018.Autor e fundador do projeto social Leitura na Esquina – biblioteca itinerante.

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